Manter viva a memória da arquitetura brasileira num país que pouco valoriza a profissão e que vem sistematicamente desmantelando as instituições e ferramentas de fomento e manutenção da cultura pode ser uma tarefa ingrata. É, porém, o desafio que se propõe o escritório aflalo/gasperini arquitetos, que acaba de lançar um acervo digital em comemoração aos seus 60 anos de história.
Reunindo alguns dos projetos mais emblemáticos do escritório, produzidos entre 1955 e os dias de hoje, o acervo oferece gratuitamente acesso a desenhos técnicos, croquis, memoriais e fotografias de obras como a Galeria Matrópole em São Paulo, a proposta para o concurso internacional do edifício da Peugeout em Buenos Aires, o Auditório Claudio Santoro em Campos do Jordão, e o Citicorp Center na capital paulista.
Em entrevista exclusiva ao ArchDaily, os diretores Roberto Aflalo Filho, Felipe Aflalo Herman, Grazzieli Gomes Rocha e José Luiz Lemos falam sobre as motivações que levaram o escritório criar o acervo digitial, os planos para o futuro do arquivo e os desafios envolvendo a manutenção de um material dessa importância histórica, sobretudo num contexto de transferências de arquivos de arquitetura brasileira para o exterior.
ArchDaily: Por que o escritório decidiu criar este arquivo digital? Há quanto tempo isso estava planejado e o que motivou esta decisão?
aflalo/gasperini arquitetos: A memória da arquitetura, a questão do acervo já era uma preocupação que vem desde os fundadores do escritório. Todo o histórico dos projetos, desde o concurso para a sede da Peugeot-Buenos Aires, que foi o projeto inicial do qual nasceu o escritório, os processos de pensar, os croquis, os desenhos executivos originais feitos à nanquim sempre foram bem documentados e armazenados. Nós temos uma casa, no bairro Moema em São Paulo, que armazena em caixa ou em tubos toda a documentação dos projetos feitos pela aflalo/gasperini arquitetos.
Nós já tínhamos tudo isso que ficou guardado por 60 anos nesse local que usamos como acervo físico. Desde 2010, a ideia de criar um projeto para compartilhar esse material já existia, porém aos 50 anos de idade o escritório mudou sua logomarca e optamos por registrar meio século de história no livro “A Arquitetura de Croce, Aflalo e Gasperini” – decisão que se comprovou assertiva após a publicação receber o Prêmio Jabuti, em 2012. Mas sim, compartilhar a memória é uma ideia que sempre esteve presente, desde a primeira geração de sócios, até a atual terceira geração, comandada por Roberto Aflalo Filho, Felipe Herman Aflalo, Grazzieli Gomes Rocha e José Luiz Lemos.
AD: O acervo digital reúne 19 projetos desenvolvidos entre 1955 e 2019 que contam a história — ou uma história — do escritório. Poderiam comentar como foi o processo de curadoria desses projetos?
a/g a: O processo de curadoria para o lançamento do Acervo Digital buscou projetos emblemáticos, seja pela história e curiosidade que possuem ou soluções arquitetônicas de vanguarda. Contamos com o apoio de Baba Vacaro, que foi convidada para ser a conselheira e curadora para os 60 anos, e junto com ela desenvolvemos um projeto audiovisual, também em comemoração à data. Os vídeos serão lançados ainda em 2022, próximo à Semana Criativa de Tiradentes.
Houve um processo de pesquisa que durou aproximadamente um ano, ao longo do qual levantamos em quais e quantas publicações os projetos foram publicados. Pedimos também aos quatro sócios diretores para listarem os 20 projetos que achavam mais relevantes. O processo de escolha para o conteúdo que está no site foi feito mediante o cruzamento das informações entre o que internamente era considerado importante e a quantidade de publicações onde os projetos foram divulgados.
Com essa lista definida, houve um processo de levantamento e análise dos arquivos físicos e digitais, qual a relevância de cada croqui e planta para contar o processo projetual de forma direta e concisa. Fizemos um processo de digitalização e tratamento desses desenhos e imagens que eram todos feitos à mão, antes dos anos 2000.
AD: Vocês planejam alimentar o acervo com novos projetos recentes? Ou, ainda, incluir outros projetos antigos?
a/g a: O acervo aflalo/gasperini arquitetos pretende ser um arquivo vivo (não um arquivo morto – nome comumente dado a materiais históricos). O acervo será atualizado de forma recorrente, seguiremos alimentando a plataforma com projetos antigos e recentes também. Os mesmos parâmetros iniciais serão mantidos, através de uma análise crítica de cada projeto e desenhos que serão disponibilizados.
AD: O acesso ao acervo digital é gratuito? O que é preciso fazer para acessar os arquivos completos dos projetos?
a/g a: O acesso ao acervo é gratuito e disponibilizamos alguns desenhos e croquis. Mediante um cadastro é possível fazer download de parte do material em alta resolução. Esse kit de imagens se restringe mais a desenhos e croquis e não a fotos, por uma questão de direitos autorais das fotografias. Nesse cadastro pedimos algumas informações, para entendermos qual o perfil das pessoas que se interessam pelo conteúdo, saber se são mais estudantes de graduação, mestrado ou profissionais atuantes no mercado e com isso direcionar cada vez mais o tipo de conteúdo a ser publicado.
Disponibilizar este material é uma maneira de contribuir e fomentar pesquisas acadêmicas. A ideia é comemorar os 60 anos e compartilhar com a sociedade as histórias e curiosidades que interferem em cada projeto.
AD: Recentemente vimos a transferência de importantes acervos de arquitetura brasileira ao exterior — tanto em suporte físico como digital. Essas notícias são sempre acompanhadas de polêmicas e levantam questões como gastos com manutenção dos itens, ou mesmo a capacidade das instituições locais de acolhê-los apropriadamente. Como vocês enxergam a decisão de manter este importante arquivo de arquitetura no Brasil e abri-lo ao público? E quais são os planos para o futuro do acervo aflalo/gasperini arquitetos?
a/g a: O acervo trata exatamente de manter viva a história da arquitetura brasileira. É uma forma de perpetuar o processo projetual de prédios que fazem parte da cidade, logo, que contam sua história. Esses espaços têm uma relevância no dia a dia das pessoas, sejam moradores, trabalhadores ou mesmo pedestres que convivem de maneira mais indireta com os projetos.
Manter um acervo físico realmente é algo que exige dedicação. Hoje temos a casa mencionada, onde guardamos nossas memórias, com uma pessoa dedicada à organização, catalogação e cuidado de todo esse material, para que ele não se perca nem se deteriore. Claro que não somos especialistas em arquivos, mas estamos fazendo o melhor possível com as ferramentas que temos. No futuro, pode chegar um momento em que tenhamos de decidir entre fazer um grande investimento na manutenção do arquivo físico ou doá-lo a alguma instituição que tenha interesse em mantê-lo.
De forma recorrente chegam contatos que nos fazem voltar às memórias, como no caso da comemoração dos 50 anos do Festival de Inverno de Campos do Jordão, onde nos foi solicitado o material do Auditório Claudio Santoro (1977), para participar de um programa junto a TV Cultura. Recentemente, o Citybank nos pediu informações sobre o Citicorp-Paulista (1983) — o banco ocupa o prédio desde sua construção e fez o resgate do processo do projeto de arquitetura para escrever um livro. Então, esse acervo é de fato solicitado através de iniciativas de outras empresas, de outras áreas e exatamente por essas questões, entendemos que criar o acervo aflalo/gasperini arquitetos fazia muito sentido.
A plataforma digital foi uma solução para que o acervo se eternizasse e se tornasse acessível. É interessante que todas as vezes que abrimos a caixa de um projeto mais antigo há um encantamento no escritório! Existe uma certa emoção em você mexer em documentos do passado. A princípio estamos fazendo isso de uma forma interna e quem sabe num futuro próximo a gente consiga ou melhorar a estrutura ou trabalhar em parceria com alguma fundação que possa dar os devidos cuidados para essas peças originais.
Conheça o acervo aflalo/gasperini arquitetos.